domingo, 14 de agosto de 2011

Os programas infantis exibidos pela Rede Globo nos anos 80: um breve estudo sobre Vinicius para Criança, A Arca de Noé, Arcar de Noé II, Pirlimpimpim e Plunct, Plact, Zum.

documento emitido pela policia federal
            A televisão foi uma tecnologia inventada nos anos 50, marcando profundamente uma geração de leitores que, a partir deste momento, teria outra maneira de construir a significação, agora associando os textos linguísticos aos visuais, experiência que o cinema até então era absoluto. O rádio, uma invenção dos anos 30, cumpria a função de levar as residências a informação e o entretenimento. O cinema, no entanto, que antecede o rádio era um meio que articulava som, imagem e movimento, mas não tinha a mesma inserção, já que para ter acesso ao texto exibido era necessário o deslocamento do espectador de suas casas até as salas de exibição. A televisão, assim como o rádio, seria um meio doméstico que mudaria a rotina das famílias.  Um espaço de destaque na sala era dedicado a televisão e a família passaria a se encontrar apenas para render-lhe a atenção devida. Apesar de ter sido produzida nos anos 50, apenas nos anos 70 a televisão passaria para as camadas mais populares, na versão preta e branca, muitas vezes adquirida de segunda mão, dada a dificuldade de acesso das massas ao meio que se tornaria o mais popular do século.
Capa do LP com as músicas do especial
            No Brasil, a Rede Globo de Televisão começa a produzir seus primeiros programas em 1965 sob o regime ditadura militar. Durante esse período, a cada início de programa, a imagem de um documento emitido pela Polícia Federal , aparecia na tela informando que tinha sido autorizado para ser transmitido naquele horário para uma determinada idade.
            Os programas infantis sempre estiveram presentes na emissora desde a sua implantação. Somente em 1965, quatro programas foram lançados: Zás Trás, Capitão Furacão, Uni, Duni Te e o Mundo Mágico de Alakazan.  Durante os anos seguintes, a quantidade oscilava chegando muitas vezes a não exibição, como ocorre em 1967,1968, 1976, 1978, 1979, 1988, 2009 e 2010, conforme o site da Rede Globo.
Baby Consuelo performatiza Emília
            Os programas infantis nem sempre conseguiam se libertar do pedagogismo, mas em alguns momentos raros, os musicais infantis cumpriram aquilo que os críticos literários consideram fundamental no processo de leitura: a literatura enquanto possibilidades, sugestões, desenvolvimento cognitivo, e menos como uma mensagem de cunho moral a ser seguida. A exemplo, podemos citar os especiais da Rede Globo dos anos 80, como Vinicius para Criança: A Arca de Noé, Arca de Noé II, Pirlimpimpim  e Plunt, Plact Zum.
            O primeiro e o segundo programas reuniam alguns poemas infantis[1] do poeta carioca Vinicius que eram musicados por ele e Toquinho, além de outros colaboradores, e que eram performatizados no programa de televisão por artistas da época de grande popularidade (Boca Livre, Moraes Moreira, Fagner, Fábio Junior, as Frenéticas, Alceu Valença, Elba Ramalho, Marina, Bebel Gilberto, Clara Nunes, Chico Buarque, Milton Nascimento, entre outros). Um momento em que a literatura, a música e a imagem em movimento se encontravam em um dispositivo popular para compor um gênero que ficaria muito conhecido: os musicais infantis para televisão.  Diferentemente de outros programas infantis, os que foram produzidos nos anos 80 teriam muito mais uma função estética do que pedagógica, já que trazia elementos lúdicos, simbólicos, que sugeriam e povoavam a imaginação e não necessariamente ensinavam regras de comportamento ou de conduta moral. Um dos exemplos é o poema “A Casa” apresentado no programa Arca de Noé, com a interpretação do grupo Boca Livre:

A Casa
Composição: Vinicius de Moraes

Era uma casa muito engraçada
Não tinha teto, não tinha nada
Ninguém podia entrar nela, não
Porque na casa não tinha chão
Ninguém podia dormir na rede
Porque na casa não tinha parede
Ninguém podia fazer pipi
Porque penico não tinha ali
Mas era feita com muito esmero
na rua dos bobos numero zero

Zilka Salaberry e Jacyra Sampaio interpretam
D. Benta e Tia Anastácia
            O poema cumpre o papel lúdico de apresentar o signo CASA, a partir do título, para em seguida decompô-la, relacionando as suas partes à sua função (talvez aqui haja levemente um sentido pedagógico, mas não é predominante). O poema brinca com o fazer e o desfazer, com a montagem e a desmontagem, tão ao gosto da atividade criadora – metáfora da própria escrita e da mente aberta e inovativa da criança - da descoberta das coisas, das palavras. A Casa do poema só é possível no plano literário, é uma construção da palavra e é por meio dela e de seu manejo que a criança interage com o mundo. O poema é um convite à liberdade criadora, onde o que está posto, construído, é desconstruído na própria palavra e na relação com as coisas. Ao ser selecionado para um programa de TV, insere a literatura e a música no universo midiático televisivo e de amplo alcance.
            Já o programa Pirlimpimpim trazia as personagens do Sítio do Pica Pau Amarelo, numa versão musical para a televisão da obra lobatiana. Iniciava com uma narrativa da atriz Zilka Salaberry que ficou conhecida como a Dona Benta, presente desde a primeira versão de 1977:

“Era uma vez um homem que contava histórias, falando das maravilhas do mundo encantado, que só as crianças podiam ver. Mas esse homem que falava às crianças conseguiu escrever tão bem essas maravilhas que fez todas as pessoas acreditarem nelas. Pelo menos as pessoas cresceram por fora, mas continuavam sendo crianças em seus corações. Ele aprendeu tudo isso com a natureza em lugares como esse Sítio (onde ele viveu). Há quem diga, que foi aqui que ele descobriu todas as maravilhas que levou para os livros, Há quem diga, que elas ainda moram aqui, entre as paredes dessa casa, há quem diga, que quem entrar aqui, poderá talvez encontrar um por um todos os sonhos, encantos e maravilhas, junto a saudade, a grande saudade que ela guarda, de um grande homem que soube falar de crianças”

Guto Graça Melo, Baby Consuelo, Morais Moreira e
Bebel Gilberto cantam Lindo Balão Azul, de Guilherme
Arantes
            Assim, na voz acalentadora e acolhedora daquela que encarnaria a avó de muitas gerações, a literatura de Monteiro Lobato era reinscrita em um suporte que talvez nem o próprio Lobato imaginaria, no qual as suas personagens teriam voz, se movimentariam em cenários naturais e construídos e, por fim, seriam conhecidos por crianças e adolescentes de várias regiões do país, como ele queria que fosse. Os artistas convidados para o programa eram, em geral, os compositores das letras e músicas. Assim, Saci Pererê, de autoria de Jorge BenJor,  foi performatizado pelo cantor que apareceu vestido de Saci; Emília, a boneca gente, Baby Consuelo, música e letra compostas por Baby Consuelo e por Pepeu Gomes, foi performatizada por Baby Consuelo que aparecia vestida de boneca, tal como ficou conhecida pelos episódios do programa Sítio do Pica Pau Amarelo; a composição Sítio do Pica Pau Amarelo, de Gilberto Gil; Pirlimpimpim, de Moraes Moreira e Fausto Nilo e Festa Animada, de Dona Ivone Lara, também comporiam o programa. Das composições do programa, Lindo Balão Azul, de Guilherme Arantes, performarizada por Moraes Moreira, Baby Consuelo, Ricardo Graça Melo e Bebel Gilberto, recebe merecido destaque:

Lindo Balão Azul
Composição: Guilherme Arantes

Eu vivo sempre
No mundo da lua
Porque sou um cientista
O meu papo é futurista
É lunático...

Eu vivo sempre
No mundo da lua
Tenho alma de artista
Sou um gênio sonhador
E romântico...

Eu vivo sempre
No mundo da lua
Porque sou aventureiro
Desde o meu primeiro passo
Pro infinito...

Eu vivo sempre
No mundo da lua
Porque sou inteligente
Se você quer vir com a gente
Venha que será um barato...

Pegar carona
Nessa cauda de comêta
Ver a Via Láctea
Estrada tão bonita
Brincar de esconde-esconde
Numa nebulosa
Voltar prá casa
Nosso lindo balão azul...(3x)

Nosso lindo balão azul
Oh! Oh! Oh! Oh!...(2x)
Nosso lindo balão azul
Uh! Uh! Uh! Uh!...

            O refrão Pegar carona/Nessa cauda de cometa/Ver a Via Láctea/Estrada tão bonita/Brincar de esconde-esconde/Numa nebulosa/Voltar prá casa/Nosso lindo balão azul tem forte apelo sinestésico, sugestivo e altamente figurativo confere aos versos do refrão um dos mais emocionantes e imaginativos. Segundo Maria José Palo e Maria Rosa Oliveira

as figuras (...) mais que representar, desejam presentar pos objetos pertencentes a realidades de outra ordem: aquelas das formas possíveis, cuja existência se deve ao fato de poderem ser imagináveis, independente de conformação da experiência e da razão.”(2006, p.37)

            Os versos associados a uma música de compasso ritmado e alegre contribuem para uma significação que reforça o caráter lúdico, mágico e que, acrescido dos elementos visuais da televisão, favorece a catarse da criança, já que as personagens, embora vestidas com roupas pouco usuais, acabam conduzindo a criança a um processo de identificação por relação de similitude de uma “composição verossímil” (PALO;OLIVEIRA, 2006, p.22), uma vez que são todas humanas. Por outro lado, ao mesmo tempo em que a televisão favorece a relação de transferência entre espectador e o objeto representado, os elementos que estão ali presentes rompe com a estrutura que sustentou as bases da literatura infantil e que Vladimir Propp elencou como sendo estruturantes das narrativas destinadas às crianças. Uma delas a centralidade em um herói. Na música Lindo Balão Azul, podemos identificar a existência de quatro personagens que interagem numa relação equitativa, fissurando o modelo proppiano, já presente na obra de Monteiro Lobato. É Lobato que apresenta as personagens do Sítio desempenhando papéis importantes, cada um em um espaço diferente.
Zé Rodrix na Ilha da Higiene
            O terceiro programa, Plunct Plact Zum, já trazia letras mais engajadas politicamente. O Carimbador Maluco, de Raul Seixas, Planeta Doce, de Jô Soares e Ilha da Higiene, de Zé Rodrix e Use a Imaginação, com Zé Vasconcelos e elenco de crianças, fazem referências críticas à sociedade autoritária, proibitiva, ordenada, disciplinada, seja na esfera mais ampla, a exemplo da situação econômica, seja na mais restrita, a exemplo da família. Nos versos Aqui nada é amargo/ nem os preços são salgados/ Com qualquer moedinha você compra um bom bocado/A vida é um brinquedo e você pode ser levado/Que ganha sobremesa mesmo sem ter estudado” são claras as referências à inflação que nos anos 80 deu um salto de 54, 9%, no início da década, para 1.157,6%, nos seus últimos anos. A crise que o país passava era traduzido nos altos preços da gasolina e na violencia policial, ainda resquícios da ditadura, diante do empobrecimento da população e das práticas ilícitas fruto da grande recessão que assolava o Brasil: “Gasolina é guaraná jorra em qualquer lugar/Polícia é brigadeiro e é sempre um bom companheiro/O Sol é um quindim e brilha doce até o fim/Nuvens de algodão doce, pirulitos no jardim.” No mundo mágico do planeta doce, a realidade ficcional (doce) se opõe a realidade social (amarga) e, ainda que não seja predominantemente pedagógica, a letra traz elementos de crítica a situação social, o que não deixa de ser um gesto educativo, pedagógico, de formação de leitor, crítico, ainda que velado no meio de tantas guloseimas.  No refrão da música, “Oh! não, não tenha medo, não há perigo aqui” ganha um sentido político tendo em vista o contexto social e histórico da época, em que o país saía de uma situação de medo, diante de tantas torturas e perseguições. A composição O Carimbador Maluco, de Raul Seixas, faz referência à censura, figurativizada pela figura de um carimbador, portanto alguém que autoriza ou não o direito de ir e vir, sendo que de performance meio clown do cantor baiano, que desconstrói a imagem do funcionário disciplinador e censurador e o transforma em uma figura humorada, debochada que revela o seu interesse em fazer parte da viagem, com as crianças, para fora do espaço da ordem, para a do encantamento, isto é, a sisudez rende-se ao espírito lúdico e revolucionário do riso. Com os versos: “tem que ser selado, registrado, carimbado/Avaliado, rotulado se quiser voar!/” enuncia-se a voz de um sujeito autoritário, reforçado pela performance do cantor que ao fazer o gesto com as mãos, simulando a carimbada, o faz de forma agressiva. A passagem da atitude agressiva para a pacífica se dá nos versos seguintes quando a postura do carimbador muda de autoritário, para um sujeito compreensivo, materializada pela entonação da voz do cantor e da desaceleração do ritmo: “Mas ora, vejam só, já estou gostando de vocês/Aventura como essa eu nunca experimentei!/O que eu queria mesmo era ir com vocês/Mas já que eu não posso:/Boa viagem, até outra vez.” Por esta passagem, a mudança de atmosfera na música reflete o esforço no plano real em transformar os anos 80 em uma década de reconstrução da democracia, depois do recrudescimento vivido pela ditadura militar. Vale ressalta que a capa vestida por Raul Seixas contém as seguintes palavras – SOS,  Censura, Perigo –  aludindo ao estado de medo e de opressão dos anos vividos sob a égide da censura política. Na música de Zé Rodrix, a referência agora é feita ao espaço familiar, na relação autoritária dos pais com os filhos, extensão das relações impositivas exercidas pelas práticas políticas dos anos que antecederam. Os versos “Nem bem o sol entrou pela janela/Nem bem você acordou/Começa o papo da mãe tagarela/E do papai ditador” mostra a linguagem, a palavra como espaço das produções das normas sociais, fazendo uso do modo imperativo para regular os comportamentos.  A resposta é dada nos versos que seguem: “Não é com discurso, força e autoridade/Que eles vão poder nos convencer/As crianças sabem muito bem que andar limpinho/É tão bom, podes crer...”. Nestes versos, do estado de dependência, a criança passa a de sujeito, consciente da importância da higiene, o que remete ao caráter pedagógico da composição. A idéia de discurso, aliado a força e autoridade, difere do sentido de discurso que usamos enquanto dispositivo analítico. Nos versos, discurso significa a fala dos pais repleta de comandos e proibições,  contrapondo-se a idéia de diálogo que seria usada pelos pais das gerações vindouras. De fato, os musicais dos anos 80, principalmente o Pirlimpimpim, estão permeados de um movimento de politização da criança por meio de composições que misturam encanto, magia e figurativização aliado aos recursos do meio audiovisuais da televisão, formando um tecido que poderia servir tanto à criança quanto ao adulto. O texto infantil, por trazer imensa carga simbólica, facilita o uso de alegorias, driblando qualquer possível resquício proibitivo, atendendo a situação de formar um público crítico.
            O que eu considero contributivo para o acervo de conhecimento produzido pela pesquisa, é que os programas infantis dos anos 80 exibidos pela Rede Globo de Televisão tinham pouco ranço pedagógico ou se tinha era muito sugestivo, seguindo também o que a literatura infantil estava produzindo, distanciando-se do modelo de Propp e assegurando uma postura em que a criança aparece mais como sujeitos.


[1] O livro A Arca de Noé foi publicado em 1970. Eram trinta e dois poemas-fábulas, quase todos com animais falantes, personificados.


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