sábado, 7 de abril de 2012

Chapeuzinho Vermelho faz 200 anos

Quantas versões de Chapeuzinho Vermelho vêm atravessando esses dois séculos? O que há de tão atraente na história de uma menina que é devorada por um lobo? Músicas, histórias infantis, filmes, peças publicitárias (Calendário Campari 2008, com Eva Mendes), videoclipes, entre outros se renderam a história da menina do capuz vermelho para refleti-la ou para refratá-la.
É fato que muitas são as adaptações da narrativa popular que se transformaram em literatura infantil pelas ágeis mãos de Charles Perrault, cujo fundo moralizante é inserido em um pós-texto explicativo, e dos Irmãos Grimm, responsáveis por um desfecho mais condizente com a moral burguesa, e que, assim como Perrault, lançam mão de uma breve mensagem de advertência. Na versão dos Grimm, um lenhador aparece para retirar a avó e a neta de dentro da barriga do lobo, o que não acontece em Perrault:


Mas este aspecto já foi bastante comentado entre os estudiosos e curiosos da literatura infantil, mas qual deles é mantido nas versões adaptadas? Assim como Grimm mudou a história, muitos recontistas têm feito as suas próprias interpretações do conto, alterando-o.
Em Deu a Louca na Chapeuzinho Vermelho, por exemplo, uma animação de 2004, dirigido por Todd Edwards, Tony Leech e Cory Edwards,  a menina do capuz vermelho é destemida e não é nada ingênua. A avó é fã de esportes radicais e a metalinguagem é o que há de mais interessante no filme. Um sapo-investigador aparece para ouvir as várias versões sobre o acontecimento e cada um conta da sua perspectiva. Essa parte do filme nos reporta aos métodos usados pelos intelectuais, folcloristas do século XIX, que foram de casa em casa (alguns pegaram mesmo os contos de segunda mão) para ouvir as pessoas narrarem, pois acreditavam que o povo, por ainda não ter tido contato com outras culturas, eram considerados genuinamente “puros”, os porta-vozes do que havia de mais próprio, pertencente a um grupo cultural. Em tempos de reconstrução dos espaços em nações, a compilação (ou quase isto) serviu de estudo filológico, afinal a língua era o aspecto central que distinguia uma nação de outra, e literário, quando houve a necessidade de se construir um acervo nacional que representasse a língua da nação. A presença de um investigador mostra a necessidade e a dificuldade de se achar uma "verdade", com uma suposta neutralidade mediadora, já que cada personagem tem as suas razões e todas muito palusíveis. O investigador não teria a sua própria versão?
É evidente que a intencionalidade dos intelectuais do século XIX pode não ser a mesma dos mediadores culturais do século XXI, mas evocar uma narrativa tão familiar para mostrar uma menina mais independente, pode estar relacionado à forma de viver de muitas meninas hoje, uma vez que nem sempre os pais podem estar presentes e elas precisam cuidar de si.
Outra adaptação recente foi a da diretora Catherine Hardwicke, a mesma de Crepúsculo, que traz uma proposta diferente, embora mantenha elementos-chaves da narrativa primordial. É interessante mostrar que no filme A Garota da Capa Vermelha, de 2011, a capa é um dos poucos elementos que permanece fiel à narrativa dos Irmãos Grimm, afinal, no filme, Chapeuzinho Vermelho é uma jovem, possui uma irmã e um pai (na narrativa dos irmãos alemães, o pai não existe). No filme, a jovem é disputada por dois jovens que são suspeitos de ser o lobo que alardeia a vila, provocando mortes violentas. Da velha narrativa, mantém-se a menina, o lobo, a mãe e a avó, no plano das personagens, além da substituição do lenhador por um caçador-exorcista; em termos de cenário, permanece a floresta que separa a casa da menina da casa da avó. Em relação ainda às personagens, uma diferença crucial e surpreendente é que o lobo é o pai de Chapeuzinho, inserindo no filme uma relação incestuosa, já que conhecemos a simbologia presente no ato de devorar, de conotação sexual. Quando nos deparamos com o filme, associamos imediatamente a significação - ato sexual - ao novo texto - relação pai-filha. Fica ainda mais ambíguo quando o pai exige que a filha fuja com ele para que possa dar continuidade a sua maldição (ou linhagem). Como o incesto precisa ser superado em nossa cultura, o pai morre ao lutar com um dos pretendentes, por quem a jovem é apaixonada. Ele se fere e contrai a maldição, dando prosseguimento a um poder e uma autoridade baseados no terror que é passado, segundo o filme, pelos homens.
Seguindo pela mesma lógica da sedução, a marca de bebida Campari lançou em 2008 um calendário com a atriz latina hollywoodiana Eva Mendes (Motoqueiro Fantasma) para encarnar em cada mês uma personagem dos contos de fada.

Na imagem acima, o ambiente gótico emoldura uma chapeuzinho vermelho já crescida, elegantemente e sensualmente vestida de branco, cujo tecido diáfano deixa exposta toda a extensão da perna. De um lado um lobo que ela traz preso à corrente e na outra mão a bebida, num clara mensagem que vincula o poder da mulher (virginal e fatal?) sobre a natureza do lobo, tendo a bebida como passaporte para este status.  
Já na música, Caetano Veloso, nos anos 60, fez alusão ao conto, escrevendo e interpretando  Enquanto seu Lobo não Vem, do álbum Panis ET Circensis, sendo que usado como metáfora para os anos difíceis de censura:
E foi nesse clima também que Chico Buarque escreveu o livro Chapezinho Amarelo, ilustrado por Ziraldo, no qual Chapeuzinho não é mais uma menina medrosa, mas desafia o lobo, transformando-o em bobo. Numa referência metalinguística, Buarque ludicamente se apropria da palavra lobo e faz uma série de combinações sonoras - lobo-bolo-bobo – registrando como uma representação pode ser modificada na mente das pessoas. É só vê-la de forma diferente. Se o lobo vira bolo - primeiro deslocamento - não é mais lobo e se de bolo ele vira bobo - segundo deslocamento - perde o poder que tinha. A sequência lobo-bolo-bobo não é apenas uma brincadeira com as palavras, mas uma nova maneira de enxergar uma realidade. Neste sentido, Buarque parece querer mostrar que para mudar uma realidade faz-se necessário uma interferência na língua, na linguagem, dissociando significante e significado. O significante lobo deixou de ter o significado de sempre, já cristalizado pela cultura, para se transformar em algo novo que exige uma nova forma de estar no mundo. Assim, a literatura infantil nunca foi e jamais será um monte de palavras sem nexo, ao contrário, todas mediadas pelo adulto que tinha clara ideia do que queria das crianças (quando eram elas seus interloutores visuais):
Vamos passear na floresta escondida, meu amor
Vamos passear na avenida
Vamos passear nas veredas, no alto meu amor
Há uma cordilheira sob o asfalto

(Os clarins da banda militar…)
A Estação Primeira da Mangueira passa em ruas largas
(Os clarins da banda militar…)
Passa por debaixo da Avenida Presidente Vargas
(Os clarins da banda militar…)
Presidente Vargas, Presidente Vargas, Presidente Vargas
(Os clarins da banda militar…)

Vamos passear nos Estados Unidos do Brasil
Vamos passear escondidos
Vamos desfilar pela rua onde Mangueira passou
Vamos por debaixo das ruas

(Os clarins da banda militar…)
Debaixo das bombas, das bandeiras
(Os clarins da banda militar…)
Debaixo das botas
(Os clarins da banda militar…)
Debaixo das rosas, dos jardins
(Os clarins da banda militar…)
Debaixo da lama
(Os clarins da banda militar…)
Debaixo da cama
A referência ao maravilhoso era muito recorrente na época da Ditadura, já que os artistas tinham que driblar as instituições fiscalizadoras e nada mais oportuno do que as histórias repletas de fantasia e simbologias para gerar ambiguidades, diversas interpretações.

Por fim, para encerrar (mas não esgotar) as referências ao conto dos Grimm, também o pagode baiano deixou a sua marca na história, mantendo a carga erótica do conto ao associar o gesto de devorar ao ato sexual. O pagode Lobo Mau (Vou te Comer) revitalizou o conto que, unindo música e performance (dança), ratifica a mensagem fazendo uso do acervo cultural. A Chapeuzinho, no pagode, aparece como uma menina ingênua para reconstruir a identidade de poder (fálico) do homem.


Quando lemos a letra da música e vemos um videoclipe, percebemos que no pagode baiano a letra é um mero acessório. A ênfase maior é na expressão corporal (a performance), na entonação de voz, nos improvisos dialogados com outro músico ou com a plateia, na indumentária do artista e cenários de palco.

Na gravação do carnaval de 2010, por exemplo, ao lado de Ivete Sangalo, o vocalista Márcio Vitor sobe no trio usando uma capa vermelha. Ivete se dirige a ele dizendo que se ele é chapeuzinho, ela seria o lobo mau. Há uma inversão carnavalizante, mas que não representa um deslocamento de poder, já que tão logo a música começa, ele retira o capuz vermelho. Ivete, por ser mais alta e mais encorpada que o cantor, acaba criando uma imagem de poder, mas que não se sustenta porque como um ventríloquo ela assume outro personagem, num jogo teatral permitido no carnaval. Ele, no entanto, que retira a capa vermelha ao subir no trio, tenta impedir (em vão) que a sua performance, que simula o coito, ganhe outros significados na representação de uma menina.
Eu sou o lobo mau, hau, hau
Eu sou o lobo mau, hau, hau
Eu sou o lobo mau, hau, hau
Eu sou o lobo mau, hau, hau
E o que você vai fazer, HAAAAAAA
vou te comer, vou te comer, vou te comer,
vou te comer, vou te comer, vou te comer,
vou te comer, vou te comer, vou te comer,
vou te comer, vou te comer, vou te comer,
Chapeuzinho pra onde você vai, diz aí menina que eu vou atrás
Chapeuzinho pra onde você vai, diz aí menina que eu vou atrás
Chapeuzinho pra onde você vai, diz aí menina que eu vou atrás
Chapeuzinho pra onde você vai, diz aí menina que eu vou atrás

Pra que você quer saber?

Eu sou o lobo mau, hau, hau
Eu sou o lobo mau, hau, hau
Eu sou o lobo mau, hau, hau
Eu sou o lobo mau

E o que você vai fazer?
vou te comer, vou te comer, vou te comer,
vou te comer, vou te comer, vou te comer,
vou te comer, vou te comer, vou te comer,
vou te comer, vou te comer, vou te comer,
Merenda boa, bem gostozinha
quem preparou foi a vovozinha.

êta danada, êta!
Chapeuzinho Vermelho inspirou e inspira muitas pessoas. É possível que neste ano outros textos passem a circular em razão do bicentenário. Quem sabe quais serão os novos recontos?

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