quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Rapunzel, a princesa perdida

A narrativa Rapunzel dos Irmãos Grimm, como já disse anteriormente neste blog, circula no ocidente alimentando-se de outras narrativas como a da Princesa Perdida, sobre a qual a animação da Disney, Enrolados, fez referência. As versões literárias têm como base a versão dos Irmãos Grimm, mas antes dele outras pessoas já haviam escrito histórias sobre uma jovem presa na torre. A torre é um elemento bastante recorrente nas narrativas populares como representação do inacessível, do intocável, do mistério.
Se pensarmos na narrativa dos Grimm, veremos como ela se aproxima dos valores burgueses que emergiam na época, considerando que os dois irmãos viveram toda a metade do século XIX, período correspondente ao avanço e fortalecimento dos ideais burgueses que na Alemanha e outros países periféricos teriam uma configuração diferente dos países centrais, muito embora a França tivesse o seu momento de tensão durante a Querela dos Antigos e dos Novos. Isto mostra que as nações foram violentamente ou sedutoramente estruturadas. O conto Rapunzel pode ser visto como uma forma sedutora de organizar o tecido social burguês, refletindo os ideais de uma nova classe social que se organizava em busca de afirmação política. Para tal, teria de lançar mãos de estratégias de popularização de suas ideias. Uma das estratégias deu-se com a apropriação dos elementos culturais do povo, uma delas as narrativas orais, com as devidas adequações baseadas na cosmovisão da classe que emergia, já que as histórias deveriam atender aos novos valores desta classe. Com isso, a burguesia intelectual pretendia reorganizar o tecido social influenciando o povo a adotar as suas regras: o amor (filial, maternal, paternal, marital), a família (núcleo familiar – pai, mãe e filhos), a individualidade, o controle dos desejos, o medo, a consciência, a coragem (os sentimentos humanos), o direito a propriedade, os ritos dos enamorados (a espera, a inacessibilidade da noiva, a cortesia do noivo, a intimidade) aparecem muito claramente no conto dos Grimms e que apontam para os ideais burgueses que então se organizavam.
Do ponto de vista da linguagem literária, o conto apresenta traços estruturantes da linguagem oral, a exemplo da repetição (p. 01) “Assim, no lusco-fusco do entardecer”/”Então, no lusco-fusco do entardecer”. A repetição na narrativa além de referir-se a uma marca da oralidade, apontando para a sua fonte, cumpre uma função importante na manutenção da audiência por parte do narrador oral e este recurso narrativo está relacionado à condução do tempo, já que as ações se passam em momentos distintos da narrativa. A repetição antecipa também a sua ruptura, mas não diz o momento, o que ajuda a manter a adesão do ouvinte. Na narrativa escrita, a repetição se manteve com o mesmo propósito, mas não possui o mesmo efeito quando aplicada na narrativa oral que exige, em razão da dispersão ser maior do que a narrativa escrita que materializa a linguagem, maior atenção. A manutenção do mistério sustenta-se pela repetição, tanto é que na segunda repetição no conto, a feiticeira flagra o roubo, provocando uma tensão no ouvinte/leitor.
A repetição ocorre também nas idas da feiticeira à torre e também do príncipe, o que mostra a importância desse elemento estratégico na narrativa, isto é, na manutenção do imaginário, da fantasia, dando-nos a ideia também de um movimento cíclico, quando um ponto de partida coincide com o ponto de chegada, neste caso, o ponto de partida é estruturante e corresponde a casa e, por extensão, à família, muito embora isto não apareça explicitamente quando se trata do príncipe. No conto, ele parte da floresta, mas subtende-se que antes ele havia saído do castelo e é para lá que os dois retornam. A jovem virginal é resgatada de sua barreira de proteção para formar uma família com o príncipe com quem passa a morar. Neste aspecto, a identidade dela passa a ser a dele.
No filme Enrolados, a inversão não representa, a meu ver, uma mudança substancial, ela é aparente e uma grande cilada discursiva. Ela pode sugerir uma certa mudança, mas não é estruturante, o que põe em dúvida um discurso emancipatório da mulher porque essa emancipação é muito negociada, complexa e tensa nas práticas sociais. Se a ordem dos fatores não alterasse o produto, poderíamos cogitar que a inversão resolvesse, mas como na vida social e nas relações humanas a exatidão matemática não  funciona, essa proporção equilibrada entre os gêneros, entre os papéis de homens e mulheres não podem ser resolvidas com uma simples inversão porque a emancipação da mulher não implica na subordinação do homem. Esta assimetria de gênero pode ser exemplificada da seguinte maneira: quando mulheres e homens vivenciam a mesma experiência não geram o mesmo sentido, não são tratados da mesma forma pela sociedade. Uma mulher e um homem em um bar, sozinhos, à noite, tomando uma cerveja (mesas separadas), por exemplo, não geram o mesmo sentido para a sociedade. Sendo assim, deslocar os sujeitos como se fossem neutros, idênticos, pode reforçar mais ainda a assimetria.
Na narrativa fílmica, ao trazer o envolvimento amoroso entre um homem pobre e uma mulher rica, pode-se estar reforçando a ideia de que o amor para a mulher é indispensável, como se fizesse parte de sua natureza, de sua feminilidade, deixando ao mesmo tempo a ideia de que não importa a condição da mulher, pois ela precisará sempre de um amor, materializado na figura de um homem. Em outras palavras: a independência financeira não é tudo, mas o amor deve ser essencial, gratuito, sem interesses... para a mulher.  José Bezerra, o personagem masculino, ascende socialmente pelo casamento, mas o seu gesto é esmaecido pelo amor. Durante toda a narrativa paira o interesse dele pelo poder material que vem dela (tiara, o cabelo, o castelo), incutido pela madrasta e por ele mesmo, mas afastado do espectador para que se cumpra o ideário burguês de que o casamento não deve ser por interesse, mas por amor. Os homens amam, principalmente quando precisam ascender socialmente pelo casamento.  Aurélia Camargo que o diga.

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